A Cosmotécnica de Yuk Hui
- Victor Hugo Germano
- 4 de mai.
- 7 min de leitura
Me aventurar em filosofia moderna está sendo um desafio. Existe um conhecimento base que não é minha especialidade, mas que tenho encontrado um grande prazer em explorar - são tantos autores e perspectivas novas, decoloniais, que me encontro numa eterna busca.
Eu me deparei a primeira vez com Yuk Hui num evento do Quebradev em 2023. Aquele evento em particular, foi um grande momento de letramento em aspectos de colonialismo digital e transformação social. Ensaiei bastante tempo para comprar o livro "The Question Concerning Technology in China", e esperei terminar minha jornada na Lambda3, e sabático, para embarcar no estudo do autor.
"Historicidade é a hermenêutica condicionada pela finitude de Dasein e técnica, que infinitiza a sua própria finitude retencional através da passagem de uma memória exteriorizada de geração em geração."

Levei uns 6 meses para ler o livro, e posso dizer que foi um dos mais difíceis que já li. Por inúmeras vezes tive que me questionar se eu teria o tal do Brio que Clóvis de Barros tanto valoriza, e precisei de muitas voltas para avançar no entendimento. O livro se divide em duas grandes partes, que são infinitamente interessantes, e podem realmente ser lidas como dois livros independentes:
Uma pesquisa histórica do pensamento Chinês, avaliando como suas bases ontológicas se conectam a questões histórico-metafísicas da tecnologia moderna, se perguntando como este Pensamento Chinês pode contribuir para um questionamento renovado de uma tecnologia globalizada.
Seria a Tecnologia Antropologicamente Universal? Podendo ela ser explicada por várias circunstâncias factuais que definem suas próprias tendências e evolução? Ou seria tecnologia sempre limitada a um entendimento cosmológico das culturas em que estão inseridas? É possível que Cultura afete a criação tecnológica, e que sem a perspectiva globalizante moderna, nós possamos pensar num futuro além da catástrofe climática em que nos encontramos?
O livro se propõe a analizar, a partir de seu resultado no Antropoceno, como pensar numa nova realidade tecnológica e moral:
Antropoceno é a época em que estamos, marcada pelo entendimento de que não apenas pela intelectualidade, mas pela sua capacidade de destruição é que a tecnologia tem um papel decisivo em nossa biosfera e no futuro da humanidade - da forma que seguimos vivendo, não temos muito tempo até que o planeta se torne inabitável.
Culturalmente, nossas bases filosóficas estão associadas à imagem de Prometeus, e o dualismo inerente entre o Olimpo/Humanos, Natureza/Cultura, Mágico/Científico. O autor argumenta que esta divisão nunca existiu no pensamento chinês, e que nossa vida, determinada pelo naturalismo europeu, se dá em dualismos diferenciantes: vida/morte, cultura/natureza, corpo/mente. Na metafísica chinesa essa representação não é igual: o Yin-Yang e Dao-Qi(道器) nunca tiveram esse mesmo dualismo, foi na verdade uma adaptação ocidental para encaixar o processo de modernização tecnológica. A preocupação do Pensamento Chinês é com a continuidade e a correlação entre as entidades, não preocupada com sua descontinuidade, como vida/morte.
Yuk Hui argumenta como o Pensamento Chinês não tem, tradicionalmente, uma visão mecanicista do mundo - "Nós dominamos a natureza através da nossa capacidade de alterá-la", mas uma tendencia de conduzir tudo para o infinito, e a harmonia com o cosmos (Dao). Esta é uma visão fundamentalmente diferente de existir neste mundo.
Nas bases dessa dicotomia presente no pensamento europeu nasce nossa aceitação de que criar Tecnologia sempre será independente de sua ação moral no mundo (seu uso), já que seria possível construir uma grande arma de destruição em massa pelo bem da ciência, enquanto nos eximimos de sua aplicação prática. A intelectualidade do cientista e o avanço tecnológico são a demonstração da superioridade do homem sobre a natureza, retirando sua responsabilidade moral e cosmológica das consequência do uso de tecnologia.
Yuk Hui também cita o trabalho de Viveiros de Castro, grande antropólogo brasileiro que apresenta uma desconstrução do pensamento europeu através da sua análise das Culturas Amazônicas.
O autor critica também o perfil globalizante da tecnologia, e sua tendência a homogeneizar toda e qualquer cultura, numa imposição colonialista de modernização, onde a homogeneidade é promovida pela convergência e sincronização tecnológica. O aceleracionismo surge como uma forma de se desvincular de qualquer imposição colonialista de cultura, mas ainda assim recai em conceitos Prometéicos de tecnologia, nunca sujeitos a interrogação.
A noção de Cosmotécnica, desenvolvida por Yuk Hui, tornou-se ainda mais relevante no momento atual de Inteligência Artificial. Sua obra critica a força homogeneizadora do universalismo tecnológico ocidental e propõe uma compreensão plural do desenvolvimento tecnológico, fundamentada em tradições culturais e metafísicas diversas. Tecnologia deve ser integrada à especificidade cultural das sociedades em que é utilizada, sob o risco de nunca sairmos de posições colonizadas através da tecnologia.
Os desdobramentos recentes de sua filosofia, incluindo o livro Machine and Sovereignty (2024) e debates sobre o impacto social da IA, oferecem caminhos críticos para repensar o papel da tecnologia em nosso futuro planetário.
Os Sistemas Técnicos que estão em processo de formação nos dias atuais, recheados de tecnologias digitais, tendem a homogeneizar as relações entre a humanidade e a tecnologia. Por isso se torna ainda mais urgente para diferentes culturas a reflexão sobre suas próprias histórias e ontologias para que possam adotar tecnologias digitais sem que seja meramente sincronizadas ao bloco homogêneo "global" e a uma episteme "genérica"
Cosmotécnica: Além do Universalismo
No cerne da Cosmotécnica está a rejeição da ideia de uma única “Tecnologia” universal. Hui argumenta que as atividades técnicas devem ser compreendidas como expressões de ordens morais-cosmológicas locais, sujeitas à especificidades históricas e ontológicas presentes em cada sociedade.
Cosmotécnica é a unificação da ordem cósmica e moral através das atividades técnicas, propondo uma nova abordagem para a questão da modernidade, através da reinvenção de si mesmo (self) e do ser tecnólogo ao mesmo tempo, dando prioridade ao campo moral e ético.
Em The Question Concerning Technology in China (2016), ele contrapõe a technē grega - ferramenta para dominar a natureza - ao conceito chinês de Dao-Qi (道器), no qual a técnica harmoniza princípios cósmicos e éticos. Esse enquadramento desafia a ideia de que o desenvolvimento da IA precisa seguir uma trajetória única, ditada pelo Vale do Silício ou por tecnonacionalismos autoritários.
Em entrevistas e textos recentes (2024–2025), Hui amplia essa crítica para abordar as implicações geopolíticas e ecológicas da IA. Ele alerta que o “sistema tecnológico gigantesco” do capitalismo global ameaça apagar a tecnodiversidade - a multiplicidade de imaginações tecnológicas moldadas por histórias culturais distintas.
Ele destaca como a modernização chinesa, apesar de sua rápida adoção da tecnociência ocidental, não conseguiu reconciliar suas tradições cosmológicas (como o Li confucionista ou o Wu Wei taoista) com a lógica instrumental do capitalismo industrial. Esse desencontro, segundo Hui, perpetua uma crise de Heimatlosigkeit (falta de lar), na qual as sociedades perdem seu fundamento ético em nome do progresso tecnológico.
"Capitalismo é a Cosmotécnica contemporânea que domina o planeta"
O livro também apresenta uma visão muito interessante sobre a Crise da Modernidade, através da análise dos movimentos Japonês (Kyoto Project) e Chinês (Mou Zhongsan), e a eventual realização de que o sentimento anti-modernidade presente desde os trabalhos de Heidegger, é fundamentalmente influenciado pelo globalismo tecnológico.
A crítica atual da Modernidade está em sua tendência a destruir e desrespeitar a história e meios de vida tradicional - e na raiz da maioria das filosofias (chinesa, japonesa, islâmica e africana) está um medo crescente de uma desorientação acelerada, e a perda das tradições: como quando os meios antigos de vida se tornam apenas atrações turísticas para quem quer pagar pela experiência. Toda cultura precisa de um "lar", e a modernização quebra com isso, levando a um nihilismo potencializado pela cosmologia ocidental.
Superar a modernidade é o desafio de nosso tempo, sendo que as primeiras décadas do século XXI demonstraram a nossa incapacidade de transcender os problemas da planetarização da Tecnologia: movimentos conservadores extremistas e fanáticos, que são reflexo da incapacidade de incorporar a modernização tecnológica a uma episteme localizada para além da cosmologia Ocidental aceleracionista.
Overcame Modernity, em referência ao desastroso projeto nacionalista japonês de Kyoto, não significa rejeitar o progresso e retornar à tradição, mas sim repensar os fundamentos metafísicos e culturais que sustentam nosso entendimento da tecnologia, abrindo espaço para uma pluralidade de Cosmotécnicas e novas formas de invenção. Sem um confronto direto dos impactos da globalização tecnológica, será impossível nos organizarmos para o futuro, estando fadados a um facismo metafórico cíclico.
"A revolução conservadora é invariavelmente um movimento reacionário contra a modernização tecnológica"
Esse livro é um chamado para que possamos reconceituar os princípios de coexistência, governança e vida. Não podemos mais guiar nosso progresso através do Complexo Industrial moderno: focado no capital e no lucro.
No entanto, Hui alerta contra otimismo ingênuo. O artigo da MIT Sloan Review (2025), Philosophy Eats AI, ressalta sua influência ao notar que o valor da IA depende dos “princípios filosóficos” que orientam seus dados de treinamento. Sem uma lente Cosmotécnica, a IA corre o risco de amplificar o que Hui chama de “má infinitude” do niilismo - um vazio em que a tecnologia acelera sem direção ética.
Inteligência Artificial e o Imperativo Planetário
"Esta nova história do mundo é possível apenas assumindo de um projeto histórico e metafísico, ao invés de simplesmente clamar pelo fim da modernidade, o fim da metafísica e o retorno à natureza - ou, ainda com menos credibilidade, a chegada da multitude e diversidade"
Estou me aventurando em seu novo livro, Machine and Sovereignty (2024), onde Yuk Hui reformula a Cosmotécnica como resposta às “crises planetárias” atuais: ascensão da Inteligência Artificial, colapso ecológico e fragmentação geopolítica.
Ele propõe o pensamento planetário - uma epistemologia política que vai além do Estado-nação para abraçar noodiversidade (diversidade cognitiva), biodiversidade e tecnodiversidade. Esse tripé desafia o rumo atual da IA de três formas principais:
Contra a Homogeneização: O desenvolvimento dominante da IA, guiado pelo colonialismo de dados e pelo lucro, frequentemente replica epistemologias eurocêntricas. Hui defende sistemas de IA informados por cosmologias não ocidentais, como ontologias relacionais indígenas ou quadros holísticos asiáticos. Por exemplo, o multinaturalismo amazônico (Viveiros de Castro) pode inspirar modelos de IA que priorizem a reciprocidade ecológica em vez da extração.
Reinserção Ética: Contraponto a ética da IA moderna, centrada em transparência e justiça, permanece presa a um cálculo utilitarista. A Cosmotécnica exige um alinhamento mais profundo com valores cosmológicos. Essa mudança pode enfrentar o problema da “caixa preta” da IA, enraizando sistemas em imaginários morais culturalmente específicos.
Soberania Reimaginada: Hui critica o Estado-nação como uma “megamáquina” incapaz de governar os efeitos planetários da IA. Ele vislumbra redes descentralizadas de alianças tecnoecológicas onde cosmotécnicas locais informam a governança global. Exemplos como o modelo de soberania digital da Estônia e o índice de Felicidade Interna Bruta do Butão apontam para essas possibilidades.
Tenho muito que estudar ainda desse conceito e desso novo livro, mas acredito que estou no caminho certo, para uma nova perspectiva sobre tecnologia.
Enfim, por uma nova visão sobre tecnologia e futuro.
A Cosmotécnica de Yuk Hui pode oferecer um plano interessante e transformador para o futuro da IA. Como Hui afirma, superar as crises da modernidade exige não apenas melhores algoritmos, mas a reinvenção da tecnologia como uma prática moral-cósmica - que nutre, e não nega, a pluralidade dos mundos humanos e não humanos.
Se você leu até aqui, obrigado. Tenho muito que me aprofundar nessas leituras ainda, espero que você acompanhe o estou construindo.
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