Durante uma atividade de Visão Computacional no mestrado, discutíamos como faríamos a anotação das images para serem usadas em um modelo de reconhecimento de padrões. Para minha surpresa, um colega parecia não acreditar que deveríamos anotar manualmente todas as imagens para que pudéssemos treinar o modelo.
"Obviamente que grandes empresas fazer isso automatizado, não tem sentido fazer manualmente, é muito desperdício de tempo!"

Com um pouco de estudo, todo o apelo utópico do uso de ferramentas autônomas desaparece, e aos poucos percebemos o que está por trás dos avanços: A mágica do aprendizado de máquina é a correria humana da classificação de dados.
O sonho da Inteligência Artificial Geral esconde um exército de trabalhadores esquecidos, em condições precarizadas de quase sobrevivência, que se tornam dependentes de plataformas com o único objetivo de extrair o máximo delas.
Além de ser uma ótima forma de especulação com startups: Crie uma empresa posando como IA, quando na realidade, através da disponibilidade de uma API, humanos realizam todo o trabalho. Acenando para a sanha do mercado de Venture Capital por soluções de IA quando de fato tudo é feito através de Microtrabalho. A própria Amazon defendeu por anos que as lojas com a tecnologia Walk Out eram todas automatizadas usando IA, quando na verdade mais de 70% das operações eram confirmadas por humanos!
O grande avanço da IA Generativa e de Deep Learning no mundo vem em grande parte do trabalho de Fei Fei Li, professora de Princeton, que construiu alguns dos primeiros datasets de imagens com anotações suficientes para elevar a performance dos algoritmos. Como? Contratando o serviço Amazon Mechanical Turk, que "emprega" pessoas na realização de tarefas atômicas, para mapear as 14 milhões de images da ImageNet, dataset que disparou a corrida neste verão da Inteligência Artificial.
Machine Learning e Deep Learning dependem destes dados de anotações para funcionar, e principalmente precisa de novos dados para que os modelos sejam re-treinados à medida que se deparam com novos cenários: seja reconhecimento de imagens ou geração de textos, é necessário constante atualização das informações de treinamento. Quem são os melhores agentes para indicar informações para o algoritmo: nós, humanos.
“Por trás dos mecanismos de busca, aplicativos e dispositivos inteligentes estão trabalhadores, frequentemente aqueles banidos para as margens do nosso sistema global, que, por falta de outras opções, são forçados a limpar dados e supervisionar algoritmos por pouco mais que alguns centavos. Os feeds do Facebook e do Twitter podem parecer eliminar conteúdo violento com precisão automatizada, mas as decisões sobre o que constitui pornografia ou discurso de ódio não são tomadas por algoritmos.Uma câmera de reconhecimento facial parece, por vontade própria, identificar um rosto na multidão, um caminhão autônomo parece dirigir sem envolvimento humano.Mas na realidade, a mágica do aprendizado de máquina é o trabalho árduo da rotulagem de dados.”

A única forma pela qual IA funciona, é não pagando o real custo para produzir e operar a tecnologia. Phil Jones escreve um livro duro, que toma bastante tempo para digerir. The Work without the Worker é um livro necessário para entender o momento atual.
Esse é um livro rápido mas intenso, e nos questiona se realmente vale a pena o uso de plataformas de IA, enquanto dezenas de milhões de pessoas precarizadas, sem receber o suficiente para sobreviver, são expostas a um novo tipo de exploração: o Microtrabalho. Arrebatadas ao redor do mundo por empresas cujo discurso é de transformação social, quando na verdade só estamos diante de mais uma etapa na longa derrocada do capitalismo.
A idéia central do livro gira em torno do Microtrabalho (microwork), e como plataformas exploram pessoas em situação de vulnerabilidade - para realizarem tarefas digitais por meros centavos. Microtrabalho é uma atividade até mesmo difícil de acreditar, enquanto somos bombardeados por sonhos de um futuro utópico e de abundância trazido pela inteligência artificial e robótica.
“O microtrabalho representa não a fênix do Sul, mas uma nova reviravolta em nossa crise planetária do trabalho. O microtrabalho é a soma dos mesmos processos de crescimento lento, proletarização e demanda decrescente de mão de obra que inflaram os setores informais de países como Índia, Venezuela e Quênia.”
O que começou com o Mechanical Turk na AWS, é representado por uma forma de automatização de tarefas e distribuição de tarefas entre indivíduos ao redor do globo, num processo chamado arbitragem. Nenhuma dessas pessoas tendo muito a dizer sobre o tipo de trabalho a ser realizado, ou qualquer capacidade de negociação de melhores condições de trabalho. Na total informalidade, Data Annotators são recrutados por empresas como Scale e Mighty AI, principalmente em locais devastados por guerra e pobreza, não apesar de suas circunstancias desesperadas, mas por causa delas.
Os serviços são acessados usando APIs e podem ser integrados em sistemas usando código: Trabalhadores como infraestrutura computacional. Atualmente não se sabe ao certo quantas pessoas trabalham para essas empresas, e sob quais condições, mas estima-se que centenas de milhões de pessoas passam o dia realizando todo tipo de tarefa. Somente a plataforma chinesa Zhubajie tem 12 milhões de trabalhadores registrados - sendo de longe o maior empregador do mundo.
Microwork vem sem nenhum direito, segurança ou rotina, pagando uma miséria - somente o suficiente para manter a pessoa viva e socialmente paralisada.
Este é o maior segredo do mercado da IA: não se sabe ao certo quantas pessoas trabalham nesse mercado, e nem quantas empresas ao todo. Tudo é regido por NDA's pelos principais contratantes. Tudo é feito para distanciar trabalhadores do resultado do trabalho: distribuído, fragmentado e sem garantias, tornando ainda mais fácil reduzir condições de trabalho.
Sendo pagos por tarefa, é comum que estas pessoas passem muito tempo sem pagamento enquanto buscam novas tasks, da mesma forma que o motorista do uber precisa trabalhar mais de 14 horas por dia para conseguir tirar seu sustento da plataforma e cobrir suas demandas pessoas. A população empurrada para fora do mercado de trabalho formal se vê direcionada a este tipo de trabalho à beira da sobrevivência, recebendo menos de $2/hora, quando tem tarefa para realizar.
Plataformas decidem qual tarefa é entregue, em quanto tempo ela deve ser realizada (algumas em até 30segundos), qual o pagamento será feito e se o anotador será pago. É comum plataformas pagarem em gift cards da amazon ou criptomoedas! A total informalidade da relação de trabalho e a arbitragem global criam um espaço ideal para redução de pagamento e abusos.
Obviamente, a quantidade de pessoas nessas plataformas diminui o pagamento por tasks, sendo esse o modelo de negócio dessas empresas: multidões de pessoas desesperadas para seguirem trabalhando, aceitando poucos centavos para garantir uma sobrevivência em jornadas de até 80 horas por semana. É a precarização digital absoluta, os sweat shops do presente.
“Essa é uma característica significativa, mas pouco comentada, do capitalismo de plataforma: os trabalhadores que transformam enormes volumes de dados em informações valiosas que sustentam o sistema são remunerados apenas no sentido mais frouxo da palavra. Sites de microtrabalho permitem que grandes plataformas escondam essa realidade ou, pelo menos, façam com que ela pareça aceitável. As forças de trabalho do Google e da Microsoft existem por trás de uma miragem de marketing que sustenta a ideia de que o microtrabalho não é exatamente trabalho, e o microtrabalhador não é exatamente um trabalhador. Muitas vezes, os solicitantes recebem todo o trabalho sem precisar pagar por ele. Apenas para aqueles que realmente realizam o trabalho, o sentimento soa vazio: ser pago para não fazer muito realmente significa fazer muito para não ser pago.”
O Capital de Nuvem e o Capital de Plataforma criaram a “Inteligência Artificial Artificial” (termo de Jeff Bezos) - ou trabalho humano, projetado para destruir o poder de barganha dos empregados ao atomizar o trabalho em tarefas que são distribuídas por uma rede de trabalhadores. Tudo o que estas pessoas veem é uma tarefa, toda a relação entre a empresa e a pessoa é feita através da plataforma, e todo o pagamento é baseado na execução - bem-vindo à versão high-tech do apertador de parafusos de Chaplin - Microtrabalho é o filho deformado do capitalismo tardio que toma tudo do ser humano pelas demandas do algoritmo.
A teia de relações entre Taskers (ou Annotators, ou Microworkers) e as plataformas que fazem o roteamento de tarefas é impressionante:
Uma empresa usa o Mechanical Turk para executar uma tarefa de treinamento da própria IA
A amazon coleta os dados da execução de tarefas, suas ações, performance de conteúdo para determinar um perfil de trabalho
Os dados anotados são utilizados para treinar os próprios serviços da AWS. Além disso, as informações de execução são utilizadas para estabelecer novos parâmetros de performance para trabalhadores nos galpões da Amazon
Plataformas menores agem como Brokers. A Playment contrata microworkers e possui acordos de entrega de dados dos trabalhadores com o Facebook, por exemplo.
A própria Playment acessa essas informações para identificar na rede de contatos do trabalhador, quem são as pessoas mais sucetíveis para também serem contratadas como taskers
A informação de comportamento dos trabalhadores também é compartilhada com Facebook, interessada em ampliar sua rede de influência
Este trabalhador é explorado em diversas frentes: sua capacidade de execução, os seus dados pessoais e rede de conexões, o comportamento durante a execução da tarefa, e na sua escolha de que tipo de tarefa poderá ou não se paga.
Estes dados de comportamento e trabalho são então usados para algoritmos de performance da própria plataforma, aumentando a capacidade das plataformas de reduzir o pagamento e realizar a arbitragem de tarefas para regiões de maior ROI.
A realidade e o futuro apresentados pelo autor são bastante impactantes. As soluções, poucas.
Um livro necessário. Recomendo

Uma nova polarização social se aponta - provavelmente já acontecendo aqui - entre aqueles com uma única carreira estável, e aqueles forçados a passear cachorro de manhã, limpar casas à tarde e agir como amigo contratado a noite, antes de procurar tarefas online a noite.
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