Por que ainda falamos em Agilidade?
- Victor Hugo Germano
- há 2 horas
- 9 min de leitura
Esta semana estive no Reimagining Agility Workshop da Agile Alliance e PMI. Um evento que engloba também a atuação internacional e o trabalho que se iniciou com Heidi Musser, Jim Highsmith, Sanjiv Augustine e John Kern com a proposta de ter discussões sobre o estado atual das práticas, princípios e valores ágeis mas sobretudo sua continuidade e futuro.

O evento foi bacana, organizado em conjunto com um outro evento do PMI e tive a oportunidade de reencontrar amigos e discutir minhas perspectivas durante o encontro, explorando a lacuna entre as promessas originais da agilidade e os desafios contemporâneos que continuam não resolvidos. Fiquei feliz em participar e rever tantos amigos <3.
O evento seguiu um modelo de votação de alguns desafios percebidos (Chamados de Problemas Cabeludos) pela comunidade para serem discutidos e ponderados pelo grupo, num esquema de facilitação bem bacana. A decepção veio, pra mim, por causa de alguns dos temas, que de tão velhos já são canônicos da comunidade:
Integração entre Projetos Tradicionais e Agile
Governança e Cultura
Agilidade em escala
Existiam outros temas, como o O posicionamento atual da Agilidade no Mercado, que me chamaram a atenção. Mas resolvi propor um tema diferente: Por que ainda estamos falando de agilidade? E o quê é o pós-agile?
Se o evento espera reimaginar Agilidade, primeiro precisamos responder se realmente ainda precisamos dela.
Pessoalmente, não entra na minha cabeça estarmos ainda discutindo sobre a possibilidade de integração de projetos tradicionais e Agile, falarmos de cultura como mecanismo de transformação organizacional, ou de como Escalar a Agilidade. Em 2025, o corpo de conhecimento desses temas já é tão intenso, que já deveriam ter sido superados - não porque foram resolvidos, mas porque ninguém aguenta mais. Isso só demonstra como Agilidade falhou em ampliar e transformar o mercado. Quando assumirmos essa realidade, provavelmente estaremos prontos para pensar em transformações reais.

Para minha "surpresa", foi um dos temas mais votados.
Eu não estou decretando que o Agile Morreu, como tantos dos colegas no mercado o fazem pra gerar entretenimento. O que estou dizendo é que um evento que se propõe a reimaginar Agilidade enquanto disciplina, precisa realmente estar comprometido com o fato de que nós, enquanto profissionais, não demos a devida resposta ao problemas tradicionais de gestão e design organizacional, e que é possível imaginar uma realidade em que as práticas/metodologias/princípios não se aplicam mais.
Eu sempre defendi que Agile é um conjunto de princípios e valores que nasceu na comunidade técnica de software, para resolver problemas de gestão no desenvolvimento de software, e que apesar de ter paralelos com o mundo completo de gestão, não deveríamos te tentado abraçar o mundo. Em meu tempo na Agile Alliance como board, ou organizando dezenas de eventos, sempre acreditei que primeiro precisávamos manter a comunidade técnica próxima, e que existem indústrias, temas e problemas que não cabem a Agilidade resolver.
A realidade que possibilitou a Agilidade emergir como movimento, no fim dos anos 90, ainda era uma resposta à crise do software dos anos 70. O colapso de projetos de larga escala que caracterizou aquele período, gerou uma série de movimentos de padronização e processos de gestão. No entanto, se refletirmos sobre as duas décadas subsequentes que marcam as ondas da agilidade, é evidente que os problemas fundamentais que motivaram seu surgimento permanecem largamente não resolvidos.
A priorização de trabalho, a garantia de confiabilidade de sistemas e a capacidade de responder rapidamente ao mercado continuam sendo desafios críticos, mesmo em organizações que adotaram práticas ágeis com rigor metodológico. Não vai ser "focando em pessoas", "mudando mindset", "atacando a cultura" que realmente atacamos esse problema - já estamos fazendo isso por décadas, e seguimos doentes, com ambientes de trabalho não saudáveis, entregas atrasadas e sem fazer integração contínua como práticas amplamente realizadas no mercado: não dá pra pensar mais em transformação ágil, quando em 3 anos trocam-se todas as pessoas da empresa, inclusive executivos.
Está tudo bem... já pode largar a mão da Indústria Ágil.
Os problemas seguem quase os mesmos, os princípios e práticas que efetivamente envelheceram e não cabem mais nessa nossa realidade atual.

Existe um aspecto estrutural que não foi e não vai ser resolvido por nós, e que sempre colocou em risco qualquer iniciativa: os incentivos que ditam o comportamento nas organizações, seguem praticamente o mesmos nos últimos 50 anos... e não tem nenhuma possibilidade de mudança.
Décadas de evolução metodológica não alteraram fundamentalmente a estrutura de incentivos que realmente direcionam o comportamento nas organizações. O interesse executivo não mudou desde os anos 70, ele só está se preparando para buscar respostas em outro lugar...
Um executivo continua querendo:
Responder rapidamente ao mercado
Priorizar trabalho que gere valor observável
Garantir eficiência operacional e financeira
Organizar equipes de forma a maximizar produtividade
Também tem o fato de que, em muitos aspectos, ele quer atingir sua meta individual para viabilizar um retorno financeiro próprio - estando alinhado com entregar algo pro mercado/empresa ou não. Se, por um milagre, esses dois pontos estiverem alinhados a objetivos de ambiente sustentável, entregas de qualidade e flexibilidade, talvez a organização tenha alguma chance... mas a realidade comum é outra. Quando o gestor é avaliado por métricas que incentivam comportamentos contrários aos princípios ágeis, nenhuma cerimônia, prática ou artefato conseguirá produzir os resultados desejados.
As mudanças metodológicas permaneceram na superfície, enquanto as estruturas profundas de incentivos permaneceram inalteradas há décadas.
Lembrando: não estamos em um ambiente falho ou quebrado - esse sistema funciona exatamente como foi projetado para funcionar, relembrando Stafford Beer.
Apesar dessa questão estruturante, desde o surgimento da agilidade no início dos anos 2000, o contexto de trabalho em tecnologia sofreu transformações:
Permanência organizacional reduzida: Executivos trocam de posição a cada três anos, gerentes mudam frequentemente, profissionais alternam entre empresas com mega velocidade. As decisões tomadas não tem conexão com a realidade das equipes, porque foram tomadas por quem já saiu.
Modelo de entrega transformado: A forma como desenvolvemos software mudou profundamente, especialmente com a integração de ferramentas que aceleraram o processo
Dinâmica de retenção de talento: Pessoas não passam mais a maioria de suas carreiras em uma única organização
Neste contexto, como discutir planejamentos de médio prazo quando os principais tomadores de decisão mudarão antes do ciclo se completar? Como manter consistência estratégica quando a liderança é volátil?
As práticas ágeis foram construídas sobre premissas que simplesmente não existem mais. Podemos dizer que são uma solução para um mundo diferente.
A Responsabilidade da Comunidade Ágil
Deve-se reconhecer honestamente que nós, comunidade ágil e seus atores variados: consultores, certificadores, comunidades, empresas e treinadores compartilhamos responsabilidade pelo ponto em que chegamos. A busca por expandir o acesso, maximizar a geração de valor da venda de consultoria, comercializar certificações e treinamentos levou a agilidade a um ponto onde tentou resolver problemas demais.
A agilidade surgiu para resolver problemas de software. Não conseguiu, e a comunidade de software desapareceu da agilidade, com poucos que ainda estão por perto. Mas a comunidade expandiu seu escopo para abordar "pessoas," "mudança organizacional," "transformação digital", "neurociência", "auto cuidado", "estratégia", etc. Questões que excedem sua competência original e que discutimos há duas décadas sem progresso concreto.
Quando Agile passou a ser produto com o qual se ganha dinheiro, ficou muito difícil olhar friamente para o que vinha acontecendo, porque a sobrevivência era mais importante: um agilista nunca vai agir contra si mesmo, e eventualmente perder o próprio emprego, então ele precisa inventar trabalho para seguir sendo útil para a organização. O mesmo serve para certificadoras, treinadores, consultores.
Como disse o Manoel Pimentel: Existe algo de saudável em reconhecer esses limites e em admitir que essa virtude de resolver um "problema imaginário e genérico" não é patrimônio moral da comunidade ágil. Outras comunidades chegaram a conclusões semelhantes e que fazem um trabalho muito melhor que Scrum para Agricultura, ou Criando uma escola Ágil.
O complexo Industrial da Agilidade, esse sim, está com os meses contados. Quando só restam os sociopatas na festa, quer dizer que estamos próximos do fim.
Ainda que possamos apontar os vários casos e tentativas de sucesso (em que eu acredito fazer parte da lista), estamos muito longe de qualquer sonho de resultado em escala: as empresas mais inovadoras, as que mais crescem, as que aceleram o mercado, não são "Ágeis" nem como se organizam, nem como entregam software.
Agile vai se tornar um espaço de nicho - como aquele gênero musical que só seus amigos meio esquisitos seguem defendendo friamente, mas que quase ninguém mais escuta.
Sinais Positivos
Apesar da minha crítica, a discussão que tive revelou perspectivas esperançosas. Como sempre, a Mari Zaparolli, que respeito muito, rebateu vários dos meus pontos em argumentos importantes, e admito que são realmente pertinentes.
O fato de podermos olhar para trás e dizer "aprendemos" representa progresso real. Mais significativamente, conceitos considerados radicais: formação de times, discussão de incentivos, importância da liderança multidisciplinar, importância da reação rápida, tornaram-se linguagem comum. Conceitos empurrados por nós, e em muitos aspectos acabaram sendo a resposta evolutiva para a gestão atual.
Isso abriu espaço para questionar modelos de organização e gestão que antes seriam considerados invioláveis. Essa perspectiva, nascida em tecnologia, poder estar dentro das discussões de design organizacional é uma vitória também desse movimento - e eu concordo. Não tenho certeza do quanto podemos dar a vitória à Agilidade nesse processo, ou ao avanço tecnológico e digitalização dos negócios, mas com certeza é um ponto favorável.
Ainda existe o fato de que os eventos ainda hoje, em sua grandiosa maioria, recebem pessoas em início de carreira que estão buscando aprender sobre gestão bem feita, e conhecer as perspectivas. Muito talento novo está chegando e espaços para experimentação e aprendizado nessa realidade emergente são essenciais - nisso, o laboratório de extreme programming na USP é um oasis.
E ai? Tem futuro?
Acredito que a gestão precisa refletir a contemporaneidade do trabalho, sem apego.
Vivemos em um mercado extremamente customizável e individualizado: tudo que você quer, na hora que quer, do jeito que quer. Mas continuamos falando sobre metodologia em termos de boas práticas e grandes modelos de maturidade homogeneizadores. A gestão continua seguindo esta lógica universalizante, pasteurizada, reproduzível e simplória.
Isso precisa mudar.
A velocidade da mudança, a complexidade dos problemas e a volatilidade de mercado exigem uma gestão sensível ao contexto, não homogeneizadora. Práticas que funcionam em um cenário podem ser contraproducentes em outro (isso sempre foi verdade, só está pior).
É inegável o impacto que a perspectiva da IA tem nesse contexto: e não importa se LLMs funcionam ou não, esta ferramenta já é parte integrante do processo de construção de soluções, e dita a prioridade material de qualquer liderança.
A integração de ferramentas de IA nas mãos de usuários comuns dentro das organizações está alterando fundamentalmente como projetamos, construímos e mantemos produtos.
Considere o cenário: um executivo não pede mais que você entregue um projeto pra ontem. Ele escreve um prompt, gera uma aplicação, e delega a manutenção a você. Este processo muda radicalmente:
Como pensamos em problemas de software
Como construímos produtos
Como mantemos sistemas em produção
Neste novo contexto, equipes de tecnologia entram em segundo plano. Deixam de ser protagonistas. A ênfase muda para o espaço do problema — design, definição dos resultados, compreensão do contexto. O tempo investido em entender o quê construir, não como construir, torna-se cada vez mais crítico.
Para esta realidade emergente, precisamos de um novo modelo de gestão. Um modelo que acomode a velocidade, que não presuma conhecimento de contextos específicos, que reconheça que a mesma prática produzirá resultados distintos em contextos diferentes.
Se nessa mudança de princípios cabem algumas perguntas: precisamos manter organizações vivas? Essas organizações hierárquicas continuam sendo relevantes e necessárias?
Seguindo nessa provocação, ainda precisamos do PMI, Agile Alliance e tantas outras? Estamos prontos pra essa conversa, ou ainda tem fila de certificação para emitir?
Quando ela chega?
Um contexto mais complexo e volátil, e organizações anseiam por metodologia, por confiança, por "a forma correta de fazer as coisas." Trazer soluções com nome, método e vivência proporciona uma falsa sensação de segurança necessária para adoção, mas reduz o impacto de mudança.
Pode parecer pessimismo, mas vou assumir o termo que o Raphael Albino me designou: isso é realismo esperançoso, do Suassuna. A agilidade completou um ciclo, essa retrospectiva é importante, mas também é importante deixar de usar o que já não funciona mais.
A hora é de reconhecer que as premissas mudaram. O mercado mudou. As organizações mudaram. As pessoas mudaram.
O que precisa mudar de uma vez por todas é como pensamos em gestão: de homogeneizador para contextual, de universal para específico, de metodologia única para orquestração de múltiplas abordagens. E talvez precisamos questionar quais são as habilidades, princípios e estruturas necessárias para prosperar nesta realidade nova. Não como mera evolução da agilidade, mas como ruptura deliberada e reconhecida com seu paradigma.
A Agile Alliance e as comunidades de prática têm oportunidade de liderar esta transformação. Mas isso requer coragem para refutar o que foi construído e abertura para discutir problemas que a agilidade nunca resolveu, e até mesmo sua própria existência.



