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Máquina e Soberania - Yuk Hui

Atualizado: 25 de jul.

Yuk Hui por um pensamento planetário


Yuri Gagarin, 1961, disse: A terra é azul, na primeira oportunidade que tivemos de enxergar nosso planeta não mais na perspectiva colada ao solo da terra, mas na sua visão mais ampla, de objeto a ser manipulado. O acontecimento foi tão importante que Marshal McLuran disse: "Sputnik criou um novo ambiente para o planeta: se encerra a Natureza, e nasce a Ecologia”. É como se a partir daquele momento, nós pudéssemos interpretar nossa realidade como algo novo, interdependente e conectada. Ecologia surge nesse contexto como uma ciência inteira da relação entre os organismos ao redor to mundo externo.


Muito se acreditou que este seria o momento para um possível pensamento planetário, consciente do impacto que estamos causando e que nos ajudasse a agir na direção de um convívio mais harmônico entre todos os povos que aqui habitam. Por décadas ecologistas tem soado o alarme de um futuro sombrio, com uma catástrofe climática em curso pelo aceleracionismo irresponsável que só tem um resultado: nos levar para o colapso da humanidade.


Nessas premissas é que Yuk Hui, um filósofo contemporâneo nos convida a uma nova perspectiva sobre o mundo, para nos ajudar a encarar um futuro possível para além do modelo atual da modernidade.


Este período que a nos encontramos, chamado de Antropoceno, marca o começo do nosso entendimento, não apenas intelectual, de que tecnologia tem um papel decisivo na destruição da biosfera e no futuro da humanidade: na forma que está, não há muito mais tempo até o momento que o planeta se tornará inabitável.


Com frequência, ficção científica tem se tornado a principal referência para o nosso futuro. E por vezes, nossa imaginação não consegue ir muito além do que vemos determinados por Hollywood quando nos deparamos com o que está sendo desenvolvido atualmente no entretenimento.


Liu Cixin, Wandering Earth
Wandering Earth - Liu Cixin

Para muitas pessoas, é difícil distinguir a realidade do que elas foram apresentadas nas últimas décadas de produção cultural.


Em se tratando de pensamento planetário para além da nossa realidade, talvez a produção cultural que melhor se assemelha à intenção do Yuk Hui seja a serie de livros chamada Wondering Earth, de Cixin Liu, autor também da série "O problema dos três corpos". Na história, a humanidade precisa encontrar uma solução para o envelhecimento do sol, que em algumas décadas destruirá a terra, e resolve se unir em um Governo Unificado planetário, para movimentar a terra para um novo sistema solar através de propulsores instalados pelo planeta, como se ela fosse uma espaçonave.


Apesar do apelo moderno, a Ficção científica não é suficiente como projeção de futuro, e na maioria das vezes nos entrega apenas distopias exageradas, e sem alternativas novas para imaginarmos um futuro promissor:

  • Os humanos vão acabar, em um colapso apocalíptico ou sucumbir a um poder maior

  • Total war e Absolutismo Intergalático

  • Poupourri de Humanas, onde o amor é a última salvação e último recurso para se salvar


Esse imaginário coloniza também a nossa imaginação, e reforça o sentimento de que não existe saída para a catástrofe, e que estamos destinados ao apocalipse.


Quando pensamos no grosso da nossa produção cultural e no que ouvimos dos chamados futuristas, talvez a saída seja a tecnologia para evitar a catástrofe - somente a IA pode resolver os problemas do mundo, mesmo que a gente destrua nosso planeta em nome desse futuro.

Scifi não é suficiente para pensarmos um futuro
Scifi não é suficiente para pensarmos um futuro

Mas isso é apenas uma distração. Nós estamos presos dentro da imaginação daqueles que monopolizam poder e recursos para beneficiar poucos em detrimento do resto do mundo.

Enquanto tech lords investem em viagem espacial e a busca por super inteligência artificial, construindo bunkers de luxo para sobreviver a uma eventual derrocada da sociedade, são os primeiros que gritam a todos os cantos que redução da pobreza através de saúde acessível e justiça social são impossíveis de serem alcançadas.


Esse monopólio de imaginação, impulsionado pela colonização, globalização e planetarização da Terra, nos prende numa realidade homogeneizada, e nos rouba da possibilidades de outros futuros, mais imaginativos, mais transformadores. Somos reféns de uma cosmologia baseada no Capital e no complexo industrial: o único resultado será a catástrofe.


Pode parecer conspiratório, mas todo esse projeto de AGI possui um conjunto de ideologias que direciona uma visão de futuro sombrio, que visa construir uma utopia para poucos através da tecnologia, custe o que custar.


TESCREAL é o anacrônimo cunhado por Timnit Gebru para o conjunto de ideologias que forma o pensamento da atualidade no Vale do Silício. São ideologias como Transhumanismo, Longotermismo, Singularianismo, Racionalismo e Altruismo efetivo. Apesar de não ser o foco dessa apresentação, eu sugiro que vocês busquem conhecer mais sobre isso, para entender o porquê, de repente, o grande objetivo do Vale do Silício tem sido construir a Inteligência Artificial Geral, Colonizar Marte, e buscar formas de superar a morte através da aceleração tecnológica.


Existe um projeto por trás desses movimentos, assumindo que é inevitável um futuro em que nós seremos dominados por máquinas inteligentes.


Uma saída pela Filosofia da Tecnologia


É dentro desse contexto que Yuk Hui trás a sua perspectiva e a possibilidade de novos futuros pro mundo. Apesar do pensamento hegemônico ideológico europeu, esse filósofo chinês busca construir pontes com o passado para planejar e organizar um novo futuro.


No meu último texto, falando sobre Cosmotécnica, descrevi como Yuk Hui discute as possibilidades de convívio com outras cosmovisões tecnológicas, e como podemos enxergar o mundo sobre diferentes lentes.

Machine and Sovereignty - Yuk Hui

Em seu livro Machine and Sovereignty (Máquina e Soberania), ele amplia sua visão, na discussão sobre um pensamento amplo que consiga fazer um contraponto com essa hegemonia ideológica que estamos inseridos.


Para pensar de forma planetária, primeiro de tudo significa pensar para além da configuração moderna de estado-nação, que foram capazes de evoluir para além da competição econômica e militar. Em segundo lugar, é preciso formular uma linguagem de coexistência entre culturas, e que permita a coexistência entre humanos e não humanos, para além do que se encontra na ficção científica. E em terceiro lugar, significa desenvolver um novo framework para a questão territorial, respondendo à crise ecológica global, para reverter o processo de entropia do Antropoceno.


Yuk Hui é um engenheiro da Computação, Chinês, e Filósofo ativo que se dedica a estudar a questão da tecnologia como uma perspectiva ativa na construção de novas realidades cosmológicas. Seu trabalho é extenso e não espero cobrir o conteúdo todo de suas análises, mas gostaria de focar essa palestra nesses dois livros, que descrevem o trabalho recente do autor. Como professor de filosofia Erasmus University Rotterdam, seu trabalho é bastante influente no mundo atual.


Ele possuí inúmeros livros, mas pretendo me manter no contexto de Machine and Sovereignty, e The Question of Technology in China, an essay in cosmotechnics.


Uma ótima referência, que também usei para construir este texto foi o conteúdo introdutório de Sergio Amadeu, no Tecnopolítica, que trata da obra de Yuk Hui. Recomendo!


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Como será o mundo em 2050?

Empresários do setor de tecnologia tem buscado planos que vao em direções opostas a resolver os problemas que o painel intergovernamental de mudanças climáticas tem dito há muito tempo: temos que agir agora! Ao invés disso, estamos explorando a possibilidade de nos tornarmos uma civilização multiplanetária, ainda que o desafio seja ordens de grandeza maior do que resolver nossos problemas aqui mesmo. Para terraformar Marte, precisamos ter tecnologia suficientemente avançada que seria capaz de terraformar a própria terra, e resolver os problemas de mudança climática, mas isso não gera capacidade de especulação financeira.


A outra estratégia é ainda mais sombria - e tem a ver com substituir humanos por uma nova especie, através da AGI - Inteligência Artificial Geral. Para tal, o colapso da humanidade não é apenas um detalhe, é um passo na direção certa. Transumanistas acreditam que através do avanço tecnológico contínuo nos chegaríamos em um ponto de transformação tal, que poderíamos nos unir com as máquinas e deixarmos de existir, parte da teoria do Harare em Homem Deus.


Estamos vivendo uma era de avanços tecnológicos impressionantes. Mas todo esse progresso pode ter um custo extremamente alto. Estamos diante de três grandes ameaças:

• O colapso climático iminente

• O desemprego em massa, causado pela automação

• E, talvez o mais alarmante: o risco de uma terceira guerra mundial.


Nós precisamos tomar uma decisão como sociedade, reconhecer o caminho que estamos colocando nosso planeta, ou mudar a direção da civilização. O Antropoceno não pode ser separado da modernidade, já que ambos são situados no mesmo eixo de tempo, ao mesmo que ampliam a divisão entre natureza e cultura, como forma de exploração e evolução.


A divisão entre cultura e natureza talvez seja um dos principais fatores que nos trouxe ao principal dilema da atualidade: até onde vamos chegar com o Antropoceno?


Para sair desse dilema, Yuk Hui sugere dois caminhos relacionados

- Geo-engenharia, utilizando tecnologias modernas para reparar a terra das mudanças climáticas

- Pluralismo Cultural e Pluralismo Ontológico


O movimento do decrescimento acredita que a única saída é reduzir a velocidade do progresso tecnológico. Segundo essa visão, é o avanço desenfreado da tecnologia que nos trouxe até esse ponto de crise – e desacelerar seria a forma de proteger nosso planeta e nossas sociedades.


Mas Yuk Hui oferece uma crítica importante a essa proposta. Ele argumenta que o decrescimento, embora bem-intencionado, pode nos levar a um cenário ainda mais perigoso de dominação. Porque para que o decrescimento funcione, seria necessário que todos os países do mundo concordassem em seguir esse mesmo caminho. E, sejamos sinceros: isso é extremamente improvável.


Se apenas alguns países desacelerarem enquanto outros continuam acelerando, isso criaria um desequilíbrio de poder, que pode resultar em uma nova onda de imperialismo e dominação tecnológica. Ou seja, o risco não desaparece – apenas se transforma.


Para Yuk Hui, a solução não está em parar o progresso, mas sim em reformular nossa relação com a tecnologia – repensar os valores que orientam nosso desenvolvimento, buscando caminhos mais diversos, sustentáveis e plurais.


Estamos sendo soterrados pelos dilemas reais deste século:

- Aceleração X Desaceleração

- Otimismo X Pessimismo

- Regulação X Desregulação

- Máquinas X Humanidade



Automação e Alienação


A partir da política de automação de fábricas chinesas na cidade de Guandong, nós já temos alguma idéia de como o processo de modernização e automação amplia a alienação das pessoas que são substituídas no projeto.


A política chinesa de automatização de fábricas na região de Guandong não gerou um desemprego em massa, como se temia, ou um aumento de oferta de tempo livre para trabalhadores, liberando-os da demanda de trabalho. Pelo contrário: aqueles que se tornaram redundantes foram trabalhar para plataformas, sem espaço para negociação e cada vez mais distantes de sua capacidade de negociação.


Com prazos cada vez mais irreais, trabalhadores se amontoam em plataformas que reduzem sua capacidade de trabalho, e tomam todo o tempo necessário para que eles realizem atividades precarizadas.


A medida que a automatização imposta por IA avança, mais profissionais são tragados para plataformas da gig economy, reduzindo ainda mais sua capacidade de sobreviver através do trabalho, tendo sua sobrevivência determinada por tarefas desconexas e pouco qualificadas. Phil Jones descreve esse processo como o fim do trabalho, em seu livro o trabalho sem o trabalhador.



Modernidade em Crise


O principal argumento do Yuk Hui em sua obra esta na sua critica à modernidade, centrada nos pressupostos universais da racionalidade ocidental, que dominam a noção de técnica, ciência, política e natureza desde o Iluminismo.


Yuk Hui argumenta que sem uma confrontação direta da globalização tecnológica, e suas raizes no naturalismo europeu, será impossível seguir além das críticas aos movimentos nacionalistas e extremistas, e nos levar para além do impasse atual.


Para seguirmos além da questão de superar a modernidade, para além de ideais ocidentais modernos, nós precisamos de um novo programa que seja aberto aos pluralismos de cosmologias e à diversidade de ritmos para transformar o que já temos. Não será "retomar à natureza" que seguiremos em frente. Nós precisamos aceitar múltiplas técnicas e tecnologias trabalhando em conjunto para um futuro mais promissor.


A techné moderna transforma tudo em objetos de exploração sem significado intrínseco e com uma necessidade de exploração. Como o exemplo da ponte no Gestell, de Heidegger. Quando engenheiros se reunem para construir uma ponte sob um rio:

  • O rio é apenas um obstáculo, ou um recurso a ser explorado e transformado

  • Tudo é medido sob cálculos de eficiência, que só possui valor enquanto atende aos objetivos econômicos.

  • O impacto da construção não precisa ser questionado, já que é possível justificar o ganho possível ganho financeiro que subjuga qualquer outra perspectiva


Assim, para essa modernidade, tudo se torna um problema logístico, que visa atender aos interesses financeiros. Não existe espaço para pensar e discutir diferentes possibilidades, que são apagadas sob o pretexto de impedirem o "progresso".


Essa modernidade em crise tem características bastante claras:

  • Universalismo Tecnológico: A crença de que existe uma trajetória única e universal para o desenvolvimento técnico e científico, válida para todos os povos e culturas.

  • Separação entre natureza e cultura: O naturalismo europeu impôs uma divisão rígida entre o mundo natural, objetivo e passivo, e o mundo humano, cultural e ativo.

  • Hegemonia da racionalidade instrumental: A técnica moderna tornou-se um instrumento para o domínio e controle da natureza, alimentando tanto o projeto capitalista quanto o tecnocrático.


Essa visão está em crise e tem sido questionada por diversos grupos ao redor do mundo, em movimentos extremistas que muitas vezes também são isolacionistas ou de retorno ao passado, percebido como glorioso.


A Revolução conservadora é invariavelmente um movimento reacionário contra a modernização tecnológica.”

A crítica atual da Modernidade está em sua tendência a destruir e desrespeitar a história e meios de vida tradicional - e na raiz da maioria das filosofias (chinesa, japonesa, islâmica e africana) está um medo crescente de uma desorientação acelerada, e a perda das tradições: como quando os meios antigos de vida se tornam apenas atrações turísticas para quem quer pagar pela experiência. Toda cultura precisa de um "lar", e a modernização quebra com isso, levando a um nihilismo potencializado pela cosmologia ocidental.


Yuk Hui faz uma crítica à noção de singularidade tecnológica, universalista e instrumental. Ele desafia a perspectiva da neutralidade da ciência e da técnica, demonstrando em muitos aspectos como a tecnologia é o mecanismo no qual a cosmovisão dominante se sobrepõe e como, com o pensamento naturalista europeu, essa visão possibilitou o colonialismo e a globalização pautada no eurocentrismo.


Superar a modernidade é o desafio de nosso tempo, e as primeiras duas décadas do século 21 demonstraram nossa incapacidade de seguir além dos problemas da planetarização através da tecnologia: e usando o argumento de Heidegger - a destruição da tradição e desaparecimento de qualquer tipo de "lar". Se considerarmos a questão da tecnologia, muitos dos movimentos de retorno às raízes das últimas décadas acabaram em facismos metafóricos (ex: Escola de Kyoto)


A tecnologia tornou-se o meio de sincronização tanto do tempo quanto do espaço, e também permeou nossas vidas pessoais. Nossas diferentes histórias nos últimos 100 anos estão se tornando sincronizadas pelas tecnologias e caminhando para um ponto de convergência apocalíptica.


Por um lado, a difusão tecnológica constrói um eixo global de tempo pelo qual a modernidade europeia se torna a métrica sincronizadora de todas as civilizações; por outro, essa mesma difusão libera a ciência e a tecnologia modernas de serem um patrimônio exclusivo da modernidade europeia, tornando o Ocidente vulnerável à competição global.

Se limitarmos nossa imaginação apenas à eficiência, velocidade e onipresença da tecnologia, estaremos apenas acelerando rumo a um impasse. Esse é o desafio do nosso tempo.


A competição tecnológica impõe uma uniformidade não apenas sobre a própria tecnologia, mas também sobre nossa imaginação acerca da tecnologia. Essa uniformidade nos impedirá de pensar em futuros possíveis.


O progresso tecnológico que experimentamos hoje inevitavelmente conduzirá a uma guerra em escala mundial, pois a uniformidade da mecanização é a razão da guerra.


Globalização and Technology aceleram a sincronização do eixo temporal do mundo
Tecnologia sincroniza os vários eixos existenciais através da globalização

Por um Pensamento Planetário


Um dos grandes aspectos do livro Machine and Sovereignty está em sua discussão sobre Soberania, e a revisão do conceito de soberania para o contexto digital. Yuk Hui propõe a transformação das formas de soberania para um mundo profundamente digitalizado.


Apesar de historicamente estar vinculado a um estado-nação, a Soberania esta sendo transferida para sistemas autônomos capazes de conduzir ações para além da regionalidade de estados-nação.


Ao forcar em um modelo homogêneo, universalista de tecnologia, estamos gerando um colapso da diversidade ontológica das varias realidades e culturas. Causando uma erosão da autonomia coletiva e individual. A técnica moderna carrega uma normatividade implícita, em padrões digitais e industriais que se sobrepõe à soberania tradicional, a partir de uma soberania técnica euro centrada.


Tecnologias eliminam questionamentos de regionalidade e fronteiras locais.


Conceito dinâmico e relacional

- Transcende o conceito de soberania na tradição politica ocidental centrada no estado

- Através da mediação tecnológica

- Campo de negociação entre agentes humanos e não humanos, mediados por cosmotécnicas diferentes

- soberania emerge como processo aberto onde a agência técnica desafia hierarquias e exige novas organizações éticas e políticas pós antropocêntricas


Estamos no limite da soberania moderna, moldada pela filosofia ocidental, que organiza um poder exclusivo de humanos sobre qualquer outro individuo, incluindo animais, plantas e ecosistemas, com o antropocentrismo, gerando uma relação de exploração e objetificação e destruição de espécies não humanas


Proposta de Yuk Hui para o mundo é abrir a questão do futuro das tecnologias, para romper com a homogeneização, que é a consciência/conscrição da colonização, modernização e globalização.


  • Noodiversidade (inspirada no conceito de noosfera de Teilhard de Chardin):

    • Diversidade de pensamento, como brasileiros pensam de forma diferente dos japoneses e etíopes.

    • Refletida na linguagem e nos modos de ser.

  • Tecnodiversidade:

    • Considera que a tecnologia, desde a antiguidade até a modernidade, carrega pressupostos ontológicos, cosmológicos e epistemológicos. Para evitar a homogeneização, é preciso questionar esses pressupostos, desafiá-los e abrir espaço para a diversidade.

  • Biodiversidade:

    • Compartilhamos o planeta com espécies humanas e não humanas.

    • Prejudicada pela uniformidade da tecnologia e da globalização, como o uso generalizado de pesticidas.

Para preservar a biodiversidade hoje, é necessário considerar essas três dimensões em conjunto, que só podem ser mantidas com o desenvolvimento paralelo da noodiversidade e da tecnodiversidade.


A reflexão planetária de Yuk Hui surge como um movimento coletivo que envolve múltiplas culturas e tradições em diálogo constante, apresentando o diferencial de preservar as singularidades culturais ao invés de homogeneizá-las.


É um movimento técnico-filosófico que reflete sobre a condição técnica global em termos filosóficos e visa criar novas possibilidades, e não apenas retornar ao passado.


Busca evitar a redução computacional, que é a tendência da modernidade em reduzir todos os pensamentos e formas de vida a modelos computacionais ou lógicas de automação, repensando os vínculos entre humanidade, técnica e o mundo a partir de múltiplas tradições.



Cosmotécnica


Cosmotécnica é um dos principais conceitos apresentado por Yuk Hui nos últimos anos, norteando seu trabalho e suas colaborações com outros pensadores contemporâneos, como Viveiros de Castro e o Perspectivismo Ameríndio.


O conceito de cosmotécnica de Yuk Hui enfatiza que tecnologias não são universais, mas estão profundamente enraizadas nos contextos culturais, históricos e cosmológicos das sociedades que as produzem. A cosmotécnica busca unificar as ordens cósmica e moral por meio das atividades técnicas, em contraste com o paradigma tecnológico ocidental, que frequentemente prioriza a eficiência mecanicista, o universalismo e o progresso econômico.


Hui defende a tecnodiversidade, ou seja, o cultivo de práticas tecnológicas diversas enraizadas em epistemologias locais, como uma alternativa aos efeitos homogenizantes da tecnologia ocidental.



Culturalmente, nossas bases filosóficas estão associadas à imagem de Prometeus, e o dualismo inerente entre o Olimpo/Humanos, Natureza/Cultura, Mágico/Científico. O autor argumenta que esta divisão nunca existiu no pensamento chinês, e que nossa vida, determinada pelo naturalismo europeu, se dá em dualismos diferenciantes: vida/morte, cultura/natureza, corpo/mente. Na metafísica chinesa essa representação não é igual: o Yin-Yang e Dao-Qi(道器) nunca tiveram esse mesmo dualismo, foi na verdade uma adaptação ocidental para encaixar o processo de modernização tecnológica. A preocupação do Pensamento Chinês é com a continuidade e a correlação entre as entidades, não preocupada com sua descontinuidade, como vida/morte.



Yuk Hui argumenta como o Pensamento Chinês não tem, tradicionalmente, uma visão mecanicista do mundo - "Nós dominamos a natureza através da nossa capacidade de alterá-la", mas uma tendencia de conduzir tudo para o infinito, e a harmonia com o cosmos (Dao). Esta é uma visão fundamentalmente diferente de existir neste mundo.


E os contrapontos sao inúmeros, que demonstram novas perspectivas de agir e diferentes tecnologias em uso.


A epistemologia que nós aceitamos é baseada no naturalismo europeu - a oposição clara entre Cultura e Natureza, vindo da modernidade européia que foi introjetada em nós através da colonização e globalização. Ao invés do naturalismo, existem diferentes conceitos para entender a natureza como o totenismo, analogismo, animismo e o perspectivismo, para citar alguns.


Esses sistemas de pensamento também são capazes de construir e possuem técnicas próprias, que foram apagadas ou esquecidas no processo de globalização e colonização. Essa é a perspectiva da Cosmotécnica, que também convida a uma filosofia para além da filosofia europeia, que só pode existir através da tecnologia.


A técnica moderna é um modo de revelação do mundo que impõe uma lógica de dominação e controle.

Dujiangyan Irrigation System
Sistema de Irrigação de Dujiangyan - 2200 anos em atividade

Um exemplo interessante de Cosmotécnica e como ela pode mudar a forma de resolver problemas pode ser visto no Sistema de Irrigação de Dujiangyan, em atividade com mais de 2000 anos de sua construção. Seguindo os preceitos Daoistas e influenciado pelo confucionismo Chinês, essa construção milenar foi criada tenho em mente a não interferência no fluxo natural da natureza e princípios de harmonia do Dao, e pode ser visto em funcionamento até hoje.


Adaptações reais para problemas enfrentados por comunidades que podem ser usados no nosso conhecimento atual. Como o desafio do calor, encontram relação em soluções milenares:


Mousgoum são estruturas em domo que conseguem gerenciar a temperatura em regiões de calor intenso ao norte de Camarões, e que nos trazem grandes aprendizados sobre como viver num mundo sem ar condicionado. Além disso sua arquitetura e construção usando a capacidade humana se conectam com a vida em comunidade e a participação coletiva que compõe o estilo de vida da região.


No Brasil, milhares de anos de aprendizado do manejo de áreas florestais e cultivo de sobrevivência nos ajudam a entender como ser produtivo e eficaz na produção de alimentos, mas principalmente na perenidade dos espaços de natureza.


Terra Preta de Índio (TPI) somente há pouco tempo passou a ser compreendida como fruto da ação humana. Um solo de coloracao escura com um processo capaz de capturar nutrientes no solo por séculos, numa região pouco fértil (como o solo ácido da Amazônia) - que pode ser a saída para a eliminação de adubos químicos na lavoura.


A maneira como diferentes culturas lidam com o cosmos, a natureza e a si mesmos influencia o tipo de solução tecnológica que elas criam em suas realidades. E se nós hoje podemos enxergar essas visões diferentes de mundo como possíveis, porque em se tratando de tecnologia, ainda seguimos uma cartilha colonizada?


Terra preta de indio
Terra Preta de Índio

Um novo Futuro


Se a gente é capaz de pensar arquitetura, agricultura, ecologia sobre a perspectiva da localidade e da diversidade de visões de mundo, porque cada vez menos somos capazes de pensar em um mundo sem a premissa individualista orientada ao consumo e à exploração de dados das redes sociais?


Quando você abre o facebook, e mesmo se nós construíssemos um próprio facebook, não adianta manter as próprias premissas epistemológicas - o que é um usuário, o que é um grupo, uma comunidade. Isso seria apenas espelhar a mesma cosmovisão.


Colonialismo Digital e Data Grab
Colonialismo Digital e Data Grab

Ambos os livros (Colonialismo Digital e Data Grab) descrevem uma nova forma de dominação moderna, onde o controle da IA e de dados tem implicações sérias para a autonomia, poder e influência no mundo, exacerbando a exploração social no dias de hoje.


Tal movimento se dá sob o mesmo pensamento filosófico europeu, expansionista e explorador.


"A inteligência artificial serve como uma desculpa conveniente para pessoas que não querem desafiar as desigualdades e preferem dar a elas uma aparência “neutra” enquanto dependem de pessoas marginalizadas no mundo todo para, de fato, ensinar ao computador o que fazer" Andrewism

Todas as plataformas se organizam ao redor da ideia de que qualquer interação com um computador deve gerar um recurso explorável, que deve ser usufruído por seu dono. Enquanto o mercado de tecnologia diz há 2 décadas que _dados são o novo petróleo_, suas ações criam uma nova ordem social, que agora significam extrair todo e qualquer dado possível da nossa infraestrutura de vida social.


Colonialismo Digital por Andrewism

Nestes nossos tempos modernos, a proliferação da tecnologia digital desafiou o modelo de transmissão dos meios de comunicação de massa do século XX.


A informação é transmitida por meio do processamento de dados dos usuários, transformando cidadãos tanto em usuários quanto em consumidores, tendo que se adaptar a novas interfaces sobre as quais não têm controle nem possibilidade de interferência – essa tem sido nossa experiência com as redes sociais nos últimos 20 anos.


"Vivemos sob a ditadura das mídias sociais; como podemos acreditar que no Facebook ou no Twitter encontraremos democracia? Isso é impossível." Yuk Hui

Nossa compreensão de democracia é limitada por meios pelos quais a alcançamos e, ao fazer isso, tendemos a esquecer que a democracia no século XXI só pode ser alcançada pela democratização da tecnologia, que tem sido minada pelo capitalismo industrial e pelo consumismo.


Yuk Hui não propõe como vamos discutir a democracia em meio às plataformas digitais: Ele quer que pensemos fundamentalmente sobre qual democracia precisamos reconstruir o mundo através da tecnologia. A democracia é fundamentalmente alterada pela tecnologia.


É fácil nos dias de hoje acreditar que eventualmente seremos substituídos por sistemas inteligentes e autônomos capazes de competir em todos os aspectos humanos.


Mas quanto mais conhecemos sobre inteligência artificial, mais entendemos que estão sendo criados novos centros de poder, capazes de criar e normalizar como todos os nossos dados são acessados, expropriando nossa própria capacidade de auto determinação tecnológica.


Estamos, nessa nova realidade digital, cada vez mais perdendo a capacidade de decidir sobre sermos agentes da nossa própria organização individual no mundo digital.


A centralização tecnológica em poucas organizações e estados causa uma dissolução da autonomia das nossas regiões: é como se o controle da infraestrutura digital tivesse se tornado o poder principal mundial, atribuindo a empresas um poder semelhante a um Estado soberano, numa referência clara ao trabalho do Yanis Varoufakis, do technofeudalismo.


Essa centralização corporativa torna o poder invisível, distante da população afetada. Sendo escondido em datacenters, cabeamentos e sistemas em background.


A Cosmotécnica na Amazônia

O Nomos da Era Digital


Yuk Hui vai discutir as transformações de soberania no contexto da digitalização e suas implicações filosóficas no mundo contemporâneo.


Ele recupera o conceito de "Nomos da Terra", de Carl Schmitt, que descreve a ordem espacial e jurídica que configura o direito internacional, sob a visão européia e que se estabeleceu como a perspectiva global de relações internacionais. Esse "nomos" vai além da difusão física, regional: determina a estruturação de uma ordem de apropriação no mundo.


O campo digital é o espaço mundial completamente transformado pelas infraestruturas digitais, organizando uma nova ordenação global, não apenas pela demarcação regional, mas pela coleta e captura de fluxos de dados e o controle através de protocolos e padrões de comunicação.


Pra Yuk Hui, este espaço não é a versão eletrônica do espaço estatal. É a recomposição de um outro modelo de soberania em termos funcionais. Aqui, plataformas, algoritmos e redes articulam o poder sob sua própria perspectiva.


Com a centralização tecnológica através de grandes corporações ocorre a dissolução da autonomia das regiões.


Neste contexto, ser Soberano neste novo mundo digital é ter agência sobre essa infraestrutura tecnológica que determina as condições de comunicação, decisão e imaginação.


Resistir ao projeto colonizador e dominador tecnológico depende da construção de sistemas próprios, alternativas técnicas que permitam a autodeterminação. Demanda um pensamento crítico da relação das culturas com a tecnologia, em sua profundidade epistemológica.


Yuk Hui demanda a Compreensão que a técnica eh um terreno de disputa politica e ontológica - Sergio Amadeu da Silveira

Discutir sobre Soberania pós modernidade é decidir sobre a própria infraestrutura tecnológica, independe das imposições universalistas de grandes corporações.


O Brasil tem uma visão bastante clara sobre sua própria soberania e localidade, e existem inúmeros exemplos de tecnodiversidade na arte e na técnica:

- Techno brega e Mangue beat

- Gambiarra e a perspectiva em propriedade intelectual

- A Cena Maker no mundo dos games (Console Lupi)


A arte nos permite sonhar futuros alternativos
A arte nos permite sonhar futuros alternativos

Technodiversidade olha para a episteme: as condições sensíveis em que o conhecimento é produzido.


Como podemos articular uma tecnologia amazônica? Como podemos entender a Cosmologia Amazônica tão bem quanto conhecemos o panteão grego? Essa são perguntas já conhecidas mas pouco difundidas para além da academia.


Arte e filosofia podem contribuir para pensar futuros alternativos, onde relações éticas e ecológicas não sejam dissociadas da tecnologia, menos instrumental e mais harmoniosa. Yuk Hui faz uma critica real à noção de singularidade tecnológica, como um mito ocidental de progresso linear, pesando muito mais num pluralismo técnico, assim como a biodiversidade.


Existe um futuro para além do aceleracionismo absolutista, mas precisamos construí-lo juntos. Yuk Hui, como um filósofo, não dá respostas, apesar aponta uma direção que cabe a nós propormos o caminho.



Se você leu até aqui, obrigado.

Este texto é o reflexo dos últimos meses de estudo e trabalho.


Este texto é o transcript da minha apresentação para o Hacktown 2025.

 
 
 

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